Olhar Mais de Perto
Essência feminina: dentro ou fora das grades, um único corpo de dor
Por Patricia Gonzalez
A primeira vez que vi Luciana no pátio interno do Instituto Penal Oscar Stevenson, ela estava séria, cabisbaixa, com os braços cruzados, demonstrando, por meio de sua linguagem corporal, estar nada disposta a conversar. Pâmela, sua colega de cela, ao contrário, era extremamente agitada, falante e, ao me conhecer, tratou logo de mostrar as unhas recém-pintadas e decoradas com desenhos de personagens. Pediu para ver as minhas e perguntou por que eram “tão curtas”? Achou a cor que escolhi para tingi-las muito “sem graça” e sugeriu que eu passasse a usar um esmalte bem vermelho para “ficar mais tchan”. Com um sorriso, elogiei seu talento como manicure e agradeci o “conselho estético” recebido. Em seguida, para a minha surpresa, pediu um abraço e lançou: “Barbie, gostei muito de você”.
A cena relatada ocorreu em uma das sessões do Projeto Sagrada Essência, o qual desenvolvi e facilitei em parceria com uma querida amiga terapeuta, no Complexo Penitenciário de Benfica, no Rio de Janeiro. Tenho a grande honra de ser conselheira do Instituo Ação Pela Paz desde 2015 e, no início de 2018, tive o imenso prazer em atuar também como facilitadora, na linha de frente desta oficina de autoconhecimento com cerca de 20 reeducadas dos regimes aberto e semiaberto. Foram dois meses de trabalho, com o intuito de oferecer às mulheres participantes uma experiência profunda de resgate da essência do feminino, por meio de rodas de conversa terapêuticas, dinâmicas de expressão corporal, além de técnicas e ferramentas baseadas na psicologia cognitiva, psicologia positiva e arte terapia. A missão primordial foi o estímulo à autocura, mental e emocional, contribuindo para o processo de ressocialização e a mitigação das chances de reincidência criminal.
Por que iniciei o texto falando de Luciana? Porque foi esta mulher, então com vinte e poucos anos, negra, cabelos bem curtos e trejeitos assumidos de menino, que proporcionou um dos momentos mais fortes que vivi ao longo de minha experiência em ações sociais. No dia em que nos conhecemos, eu havia organizado uma atividade especial com o grupo. Luciana sentou-se à mesa destinada ao workshop e se manteve de cabeça baixa por algum tempo. Pâmela, num ímpeto, contou que a amiga comemorava seu aniversário naquele dia e, por isso, estava muito triste. O motivo era a impossibilidade de atender ao pedido da filha, à ocasião com seis anos, para que a mãe a acompanhasse até a escola naquela data. Depois de muito tempo afastadas, elas haviam se reencontrado dias antes, na casa da família, em uma das comunidades do Rio, quando Luciana foi obteve a concessão do chamado indulto de Natal.
Entreguei para cada uma das integrantes do grupo um caderno com capa florida, em lilás e rosa, juntamente com um estojo cheio de lápis e canetinhas coloridas. Pedi que colocassem no papel um sonho que elas gostariam que fosse realizado e depois falassem sobre o que representava em suas vidas. Cheguei bem perto de Luciana e disse a ela que seria uma ótima oportunidade de desenhar, com as cores que ela e sua filha mais gostavam, a cena que desejaria viver no dia do seu aniversário. Seria uma forma de ela expressar os bons sentimentos que estavam presentes naquele desejo tão forte. Poderia, com isso, fazer uma homenagem à sua pequena menina. Como resposta, um largo sorriso, seguindo por um vaivém de traços que saiam de sua mente diretamente para a folha.
Quando terminou o seu trabalho, olhei para o caderno e lá estava o desenho de uma criança, talvez até de uma garotinha da mesma idade que sua filha. Uma árvore carregada de maçãs, rabiscos, em verde, que representavam a grama, nuvens, sol sorrindo, flores, uma pequena escola e uma menina, feliz, à janela, acenando para aquelas que chegavam: Luciana, acompanhada da namorada, sua mãe e Pâmela, considerada a melhor amiga. No papel, nada de crimes cometidos, grades, agentes penitenciários e outras privações. Ela era livre para viver o seu aniversário, ao lado da filha, num dia “colorido”, celebrando com as pessoas que lhe eram mais caras.
Ao pedir que Luciana relatasse a cena desenhada, ela chorou. Disse que queria ser uma pessoa melhor para deixar a filha feliz, mas achava que nunca conseguiria. “Eu nasci torta e vou morrer torta. Eu não presto para nada. Só fiz besteiras desde que eu nasci. A única coisa certa que fiz foi a minha filha, mas ela não merece ter uma mãe como eu”, desabafou. Ouvir aquela mulher expressar todas aquelas palavras de desvalia foi forte para mim. Como o encontro já estava no fim, lembro bem que só tive tempo para dizer a ela duas frases, olhando fundo nos seus olhos: “você já está pagando pelos erros que cometeu, mas não precisa fazer disso o seu destino. Você é totalmente capaz de mudar a sua história de vida, de fazer tudo de modo diferente. Por sua filha, sim, mas, acima de tudo, por você mesma.” Então, eu recebi mais um abraço naquele dia. “Você acha que eu consigo?”, ela perguntou. Eu disse: “tenho certeza”.
Enquanto eu recolhia o material utilizado no encontro, pensava em todas as crenças e padrões de pensamento que poderiam estar por trás da forma como Luciana havia construído sua autoimagem. Toda a nossa estrutura é constituída pelo conjunto destas crenças que acumulamos ao longo de nossa existência – aquelas que realmente vivemos, na prática, ou que apenas projetamos na tela mental. Quais teriam sido as necessidades básicas de Luciana que deixaram de ser atendidas lá na infância e que impactaram na forma como ela construiu sua percepção e ideias a respeito de si mesma, do mundo e de suas perspectivas – a chamada tríade cognitiva?
Seguindo esta trilha de raciocínio, diante do cenário de alta complexidade do sistema penitenciário brasileiro e de todas as dimensões humanas – coletivas e individuais – envolvidas nesta dramática questão, me pergunto sobre como poderíamos ampliar as ações que ajudem reeducandos e egressos do sistema penitenciário a contarem uma nova história sobre si mesmos. É claro que estamos falando de um processo sistêmico, o qual envolve os aspectos socioeconômicos e a quebra de preconceitos e paradigmas de nossa sociedade. O trabalho fantástico realizado pelo Ação Pela Paz, seus parceiros e tantas outras instituições que atuam com esta causa vem ganhando cada vez mais importância neste cenário.
Mudar é possível, sim. Há muitos aspectos, extremamente delicados, envolvidos nesta jornada, é verdade. Mas vou narrar, brevemente, duas situações que presenciei durante o período que convivi com o grupo de trabalho no Oscar Stevenson. Logo que cheguei tive a oportunidade de conhecer Adriana, que estava prestes a ganhar a liberdade. Ela era estudante de Psicologia quando foi envolvida com o tráfico de drogas por meio de seu então companheiro. Durante todo o tempo que passou na prisão, seu pai e filhos a acompanharam de perto. Quando conversamos, ela me disse que queria ser coach para ajudar pessoas a “voltarem para o caminho do bem”. Estava estudando na biblioteca da unidade, com os livros que o pai levava. Falou de seus planos de retomar a graduação e de como tudo seria diferente em sua vida. Como eu havia concluído minha formação em coaching recentemente, levei de presente um de meus livros para ela, com uma dedicatória que desejava muito sucesso em sua nova caminhada. Nos olhos daquela mulher, vi que seu processo de autotransformação já havia começado. Sem sombra de dúvida, o apoio da família era seu alicerce, sua âncora.
O outro relato foi a cena linda que presenciei, do lado de fora do presidio, quando conversava com a diretora da unidade bem em frente ao portão de entrada. Uma mulher que caminhava, apressadamente, olha para o lado e, ao ver a minha interlocutora, caminha em sua direção e a abraça. “Que bom ver você. Sou tão grata por tudo o que você fez por mim”, diz. Em seguida, conta que estava trabalhando como manicure em um shopping e que tudo estava indo bem. Havia empolgação e esperança em sua expressão. Muito simpática, conversou rapidamente comigo, desejou sorte no trabalho que estava realizando e logo partiu. Era uma egressa que havia ganhado a liberdade havia poucos meses. Morava nas proximidades do Oscar Stevenson.
Quantas grades internas nos separam da realidade prisional do país? Para mim, desde o início, ficou muito claro que a condição básica para se fazer um trabalho social dentro de unidade prisional é o não julgamento. Tarefa nada fácil, pois a nossa mente julga o tempo todo. Porém, é um exercício importante, embora complexo, que nos fortalece e transforma. Nunca fiz qualquer pergunta sobre os delitos que elas haviam cometido, mas, várias das participantes da oficina sentiram necessidade de contar trechos de sua trajetória na criminalidade durante exercícios de autoconhecimento. Talvez precisassem de uma escuta ativa, do outro e de si mesmas, a fim de ajudar a processar o curso que a vida tomou.
A maior parte havia sido abandonada por seus companheiros, pais, filhos e amigos. Sem trabalho para todas que estavam no aberto e semiaberto, muitas delas se prostituíam nas redondezas do presídio. O envolvimento com o tráfico de drogas, por meio de seus parceiros, era uma das principais razões. Durante as sessões da oficina, nas histórias que ouvi sobre os caminhos tortuosos que as levaram até ali, era possível identificar os elementos que compõem a essência do feminino: acolher, nutrir, servir, amar incondicionalmente. Todos os sentimentos e emoções que nós, mulheres, buscamos e vivemos, de forma mais ou menos intensa. Fora ou dentro do que é visto como à margem da lei. Não, não estou desconsiderando a gravidade dos crimes cometidos e, muito menos, a necessidade do cumprimento da pena. Mais uma vez, minha perspectiva é a das dimensões humanas envolvidas.
Quando eu havia terminado de recolher todo o material de trabalho e já me preparava para sair, acompanhada de uma parceira que conduzia uma oficina de bordado com um outro grupo de reeducandas, ouvi uma das agentes penitenciárias chamar o meu nome. Olhei para trás e lá estava Luciana, em sua companhia, com sorriso nos lábios e o seu desenho em uma das mãos. “Eu estava guardando para a minha filha, mas achei melhor dar para você. Queria falar para você que hoje foi muito bom”, afirmou, sendo levada de volta à cela, logo em seguida. Só consegui dizer “obrigada”, mas queria ter tido a oportunidade de falar muito mais. Olhei para a folha. Parte do desenho foi borrada com as lágrimas daquela menina crescida, que precisava de ajuda para derrubar as próprias grades internas que construiu em relação a si mesma. Até hoje, quase dois anos depois, penso em Luciana, torcendo para que ela tenha conseguido mudar sua vida do lado de fora do presidio. Sei que minha conexão imediata com ela foi ativada pela maternidade, já que nossas filhas têm a mesma idade. Mas, dentro ou fora das grades, acredito, verdadeiramente, que todas nós, mulheres, estamos atadas pela essência do feminino, o que nos torna um único corpo de dor.