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Liberdade e Estigma

Por Gloria Faria
Visita de Gloria Faria a um dos projetos apoiados pelo Ação Pela Paz – Foto: divulgação
Visita de Gloria Faria a um dos projetos apoiados pelo Ação Pela Paz – Foto: divulgação

A liberdade tem uma dimensão interior, personalíssima, na qual é apreendida de forma diferente por cada pessoa.

Luís Roberto Barroso[1]

Tenho o sentimento de que todos os seres humanos desejam ser livres, ainda que boa parte, não tenha clareza dos limites e contornos da liberdade. A opressão é mais fácil de ser reconhecida, de imediato, assusta as vontades, tolhe as ações, encolhe a vida.

As grades virtuais, mas nem por isso menos limitadoras, podem se perpetuar para além dos muros das penitenciárias, dos hospitais. Podem se perpetuar nos olhares críticos da repulsa velada, na insegurança, no medo da rejeição que sente aquele que carrega um estigma.

A sociedade é competitiva, crítica e cruel. O estado civilizatório humano ainda não alcançou o grau de entendimento para aceitar o fato, simples, de que “os homens são feitos e nascem iguais e que as pessoas são diferentes e não umas superiores às outras”[1].

Um estigma faz de quem o carrega um prisioneiro, rouba-lhe a chance de se sentir livre. Tive a oportunidade de conviver de muito perto com duas pessoas cujas vidas foram impactadas pelo estigma e cujas trajetórias puderam ser diferentes.

Minha mãe teve tuberculose na saída da adolescência, no início da década de 1940. Mesmo com o recente acesso à penicilina, o tratamento da doença, de alto contágio, fazia do doente um pária dentro da própria família, com talheres, lençóis e roupas fervidas à exaustão, quartos separados e apartados de qualquer contato físico. Curada, casou-se e teve a mim e a meu irmão, nessa ordem. Meu pai a tratava como um bibelô.

Os grilhões ficaram para trás? Nem todos. Nunca nos beijou. Não andávamos descalços e não podíamos chupar gelo. A banheira era flambada cada vez que íamos tomar banho. Se chegávamos com os sapatos molhados da chuva papai esfregava nossos pés com álcool. No bonde, céus como faz tempo…, não podíamos tocar em nada, muito menos rosto, boca ou nariz. Chegando em casa, repetia-se o ritual do álcool. Se eu tossia me perguntava, já preocupada, onde eu tinha apanhado o resfriado. Eu achava um exagero… e não tinha ideia de onde saia tanto cuidado. 

Foto: reprodução
Foto: reprodução

Só vim a saber que ela tivera tuberculose quando, já com mais de 70 acompanhei-a ao médico que depois de olhar um raio-x do pulmão perguntou-lhe: a senhora teve tuberculose há muito tempo, não? Quando foi isso? E ela disse, Doutor, eu tive uma pleurisia quando era jovem, ao que o médico se calou. Sofri sem os beijos, mas ela provavelmente sofreu mais por achar que não podia nos beijar.

Casei muito jovem e meu primeiro filho nasceu com lábio leporino e fenda palatina graves. Na casa de saúde fiquei imaginando como seria quando ela o visse e imaginei que jamais ficaria sozinha com ele ou lhe daria comida. Me enganei, acho que ao vê-lo descobriu que havia alguém mais frágil e que precisava dela. Foi uma avó beijoqueira, que fazia todas as vontades, ficava com ele para que eu trabalhasse, mudava-se para minha casa com meu pai sempre que viajávamos. Libertou-se do que eu pensava (mais tarde) que era toque e passou a viver como era, saudável.

Meu filho pode lidar melhor com seus grilhões. O pai e eu não criamos redoma ou rede de proteção à sua volta, acho que tendemos até para o outro lado, de dar corda à ousadia. Ele chegou tão cheio de energia, com tanto apetite, bem-humorado, de bem com a vida, guerreiro incansável que saía na porrada toda vez que o chamavam de boca quebrada ou boca de cavalo, dócil aos tratamentos, adaptado a todos os pós-operatórios, aparelhos de dente, sessões de fonoaudiologia, que achávamos que tudo ia dar certo. E deu. Advogado, pai da minha linda Carol, hoje, eu trabalho no seu escritório.

Tive sorte. A vida tem sido boa comigo, nasci de pais que me deram tudo de que precisei no caminho que escolhi. Estou onde quero estar.

Sempre me impressionou muito a falta de liberdade, e quando ela é absoluta como no cárcere, me intrigava como poderia ser suportada. Quando fui pela primeira vez a um presídio fiquei muito impactada com a experiência. Foi uma oportunidade como outras na minha vida, que surgiram sem que eu tivesse buscado. Era Superintendente Jurídica da CNseg – Confederação Nacional das Seguradoras, e o diretor que havia sido convidado para a visita à Centro de Ressocialização (CR) de Limeira (SP) não podia ir e me perguntou se eu poderia. Eu podia e queria. Entre curiosa e assustada, sem saber direito o que ia encontrar e como me sentiria depois, fui para São Paulo encontrar o presidente do Conselho e fundador do Instituo Ação Pela Paz, Jayme Brasil Garfinkel, e de lá para o CR, onde o desembargador Dr. José Renato Nalini se juntaria a nós para a visita. E como pensei, depois de uma visita a um presídio a vida não fica a mesma. O presídio tem cheiro de tristeza, o ar que corre lá dentro é mais pesado que de galeria do metrô… Entre eles você vê um que parece com um vizinho, um que podia ser seu filho, seu irmão… e pensa… todos “foram feitos e nasceram do mesmo jeito”, eles e nós. 

O Ação Pela Paz estava nascendo e a oportunidade de fazer parte desse projeto me fascinou imediatamente. A ideia de criar condições, desenvolver projetos para diminuir a reincidência criminal, promover condições para os egressos se reinserirem na vida daqui de fora, no trabalho, resgatarem os laços familiares, e serem reconhecidos como cidadãos me pareceu genial. O discurso de que a criminalidade só aumentará e que, cada vez, serão necessários mais presídios, deixou de fazer sentido. A reincidência é a grande provedora de encarcerados. E ela se alimenta daqueles que voltam à liberdade sem condições de se reconhecerem livres, se livrarem do estigma de ser um egresso e seguirem em frente. Não, não é fácil. Não é fácil enfrentar o olhar julgador ou incrédulo da sociedade, a recusa para a vaga de trabalho, o fascínio do dinheiro fácil do crime, mas é possível. E será cada dia mais. O Instituto já colhe os frutos de cinco anos de projetos e parcerias que já se espalham por vários estados. Termino citando mais uma vez esse brilhante jurista e ministro do STF, Luis Roberto Barroso, “quem se perdeu pelo caminho precisa de ajuda, e não de desprezo”.

[1] LUÍS ROBERTO BARROSO – Ministro do Supremo Tribunal Federal – STF – Migalhas de Luís Roberto Barroso – Volume I – Migalhas

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