Olhar Mais de Perto
O desafio de humanizar
Por Jiskia Sandri Trentin
A vida é repleta de sonhos e desafios. Tornar-me Promotora de Justiça foi um misto dos dois. Ingressei no Ministério Público de Mato Grosso do Sul no ano de 1999, com 24 anos de idade, depois de me apaixonar pela carreira ao concluir um estágio de três anos na instituição. O sonho de defender a sociedade e de poder realizar a “justiça” me desafiava, e eu sabia que, de alguma forma, esse trabalho me faria crescer.
Com tanto aprendizado proporcionado por esta carreira instigante, foi no ano de 2012 que assumi a 50ª Promotoria de Justiça de Campo Grande, cuja atribuição primordial é velar pelos direitos da pessoa encarcerada. Uma função aparentemente paradoxal, uma vez que o Promotor de Justiça é velho conhecido por ser o responsável pela acusação, e, consequentemente, por dar ensejo ao processo criminal que desemboca, não raras vezes, numa pena privativa de liberdade em caso de condenação.
Para cumprir esse papel de defensora de todo e qualquer direito que não é (ou não deveria ser) atingido pela privação da liberdade – atuando como garantidora de políticas de sobrevivência (como saúde, alimentação, higiene, vestuário, alojamento adequado etc.) e de políticas de transformação (inserção em trabalho, estudo, profissionalização, leitura etc.) do sujeito encarcerado – foi preciso escutar o destinatário primeiro do meu trabalho: a pessoa que está presa.
O sujeito que se encontra em situação de prisão por condenação criminal, ou seja, por ordem e aos cuidados do estado, assim se encontra em razão de dois clássicos objetivos da pena: pagar o débito com a justiça e usufruir de condições adequadas para a harmônica integração social.
Desse binômio, o segundo objetivo – mais árduo de se cumprir, já que o primeiro se cumpre, basicamente, com o transcurso do tempo dentro da prisão – se tornou meu foco, não por bondade ou benevolência, mas porque o legislador pátrio, ao editar a Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984 – a Lei de Execução Penal, assim estabeleceu no seu art. 1º, e eu, como promotora de “justiça”, não estou autorizada a ignorar o texto legislativo, bem como tantos comandos constitucionais e até mesmo internacionais que tratam da obrigatoriedade da humanização do cumprimento da pena, inclusive como forma de prevenção a novos delitos e de concessão de um novo horizonte a quem se envolveu com a criminalidade.
Logo, ao realizar as inspeções mensais nas unidades prisionais, cumprindo o comando do art. 68 da LEP, aprendi a primeira grande lição: a não generalizar. Quando não se toma todos como regra, percebem-se muitas exceções. Isso só foi possível com a busca constante de humanizar o ato, ouvindo cada reeducando entrevistado com atenção e procurando enxergar nele, como a boa criminologia ensina, o motivo que o teria levado para aquele lugar em que ninguém quer estar e como posso fazer do meu trabalho uma ferramenta para que esse indivíduo tenha uma nova perspectiva de vida longe da criminalidade ao sair de lá.
É desafiador humanizar esse trabalho diante de tantas forças negativas e discriminatórias sobre o sistema carcerário, no sentido de que criminoso é tudo igual, não muda; o ambiente é superlotado e corrupto, não permite atividade positiva nesse lugar; não vai adiantar nada seu esforço porque o preso, quando sair, vai cometer crime de novo. Quem já não foi criticado por acreditar na ressocialização ou foi ridicularizado por isso?
Sim, eu já fui, como sei que muitos daqueles que estiverem lendo este artigo também o foram. A verdade é que ressocializar não é tarefa fácil, ela exige trabalho e uma atitude totalmente contrária à posição de conforto revelada pela crença de que o sistema é falido.
Ressocialização também não se pratica sem parcerias.
Foi assim com o projeto “Feira do Artesão Livre” iniciado no ano de 2014, que já está na sua 13ª edição (as duas últimas realizadas em formato totalmente virtual, por conta do momento pandêmico ora vivenciado), por meio do qual o Ministério Público de Mato Grosso do Sul, por intermédio da 50ª Promotora de Justiça, de mãos dadas com a AGEPEN/MS, com a colaboração do Conselho da Comunidade e do Instituto Ação pela Paz, estimulam o aprendizado de técnicas de artesanato no interior de unidades prisionais de regime fechado e semiaberto de Campo Grande e organizam duas feiras anuais para apresentar à sociedade os produtos produzidos e colocá-los à venda.
Esse projeto, a par de propiciar o uso do tempo útil enquanto se cumpre pena, renda lícita e até mesmo o abatimento de parte dela pelos dias trabalhados, além do convívio harmônico entre agentes penitenciários e reeducandos, abre uma janela na transformação do indivíduo encarcerado, pela valorização de saber que é possível produzir algo bom e belo, mesmo dentro do cárcere; pelo reconhecimento implícito dos consumidores que levam seus produtos para casa; pela gratidão da oportunidade recebida.
Dentro do universo de dificuldades e do ambiente hostil do sistema carcerário, tenho aprendido, um dia após o outro, que todos nós falhamos, por sermos humanos, e que não posso medir a efetividade da defesa dos direitos de quem está preso pelo crime que essa pessoa cometeu, por mais hediondo que ele seja; que todos merecem uma nova chance e têm o direito de conhecer possíveis maneiras de se viver a vida longe da criminalidade.
É nesse trilhar que o desafio de humanizar o ambiente onde se cumpre pena privativa de liberdade permite o sentimento de esperança e a concretização de sonhos, pois entregamos a quem depende do nosso trabalho o melhor que temos, com verdade, respeito e gentileza. Porque no final das contas, a lei do retorno é infalível: o que fazemos e como fazemos será exatamente a medida do que receberemos.