Ação pela Paz - Reconstruindo a vida ponto por ponto

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Reconstruindo a vida ponto por ponto

Por Aglaê Ruth
Foto: Jessica Knowlden / Unsplash
Foto: Jessica Knowlden / Unsplash

Me chamo Aglaê Ruth. Tenho 54 anos e sou esposa, mãe e avó de oito netos. Filha de Maudir e Waldemar Leopoldo (meu pai, minha maior referência). Tive uma infância privilegiada, tanto pela boa condição financeira familiar, quanto pelo melhor: os exemplos que meu pai me deu de amor e caridade.

Aos 12 anos vi meu pai morrer de um infarto fulminante, e aí mudanças instantâneas aconteceram. Minha mãe, acostumada a ser madame na Mooca, voltou a trabalhar, e eu, com 12 para 13 anos, absorvi a responsabilidade da casa e do cuidado da minha irmã menor, a Aline.

Aos 14 anos eu trabalhava e já assumia o comando da minha vida. Neste tempo eu conheci e passei a ser usuária de maconha. Me casei aos 16 anos e com dois filhos, aos 19, já era a mantenedora da família. Com 20, estava em outro casamento. Com meu segundo esposo eu tive mais dois filhos e neste relacionamento, muito conturbado – pois meu finado esposo era usuário de cocaína –, presenciava minha vida cair em ruínas.

Conhecemos o crack em 1989, quando chegou a moda em São Paulo, e com o uso abusivo de ambos assistimos a família ser destroçada. Meu esposo veio a falecer de um derrame cerebral e eu com duas crianças pequenas. O caçula e os mais velhos, minha finada mãe cuidou, e eu e o Caian ficamos juntos por um tempo em situação de rua, até minha irmã ficar com ele.

Aí, eu sozinha e totalmente absorvida pela droga, comecei a cometer pequenos delitos, furtos e contravenções. Tudo para o uso do crack. Fui presa algumas vezes, até que em 2003, depois de mais uma prisão parei com o uso das drogas.

Em 2005, eu em liberdade, não conseguia trabalho, mesmo tendo experiência em várias áreas e um bom currículo. Me vi encurralada pela necessidade e aceitei ficar 12 horas como olheira em uma biqueira famosíssima em São Paulo, a Pilões, em Heliópolis.

Lá, em menos de seis meses, já era pessoa de confiança do crime organizado, liderava o tráfico de drogas das 7h às 19 horas, sete dias por semana. Ganhava dinheiro que nem água. Tinha conceito e respeito.

Comunidade de Heliópolis, em São Paulo - Foto: UNAS
Comunidade de Heliópolis, em São Paulo - Foto: UNAS

No carnaval de 2006, o Datena colocou uma matéria na Band e eu fiquei famosinha. Toda minha família sofreu as consequências. Aliás, é bom ressaltar, que eu envolvi toda minha família no tráfico de drogas, entre outras coisas. Meu filho Caian, com 15 anos, era segurança armado da biqueira. 

Após a matéria da TV, eu tive que fugir do ‘Helipa’, mas fui presa meses depois em Guarulhos e sentenciada a 12 anos de prisão. Foram quase três anos sem ver ninguém da minha família. Só revolta e solidão.

No final de 2008 eu saí em liberdade, por conta de uma anulação de processo. Logo em seguida houve o falecimento da minha mãe, em outubro daquele ano. Em fevereiro de 2009, meu filho Caian morreu em meus braços, vítima de uma overdose. Foi aí que virou a chave. Eu senti a mesma dor que causei a tantas mães e à minha própria.

Decidi que nunca mais seria responsável pelo sofrimento de uma família.

Mas não acabou... em 2011 eu trabalhava no IBOPE como pesquisadora e fui convidada para fazer um job em Cuba. Precisava de um novo RG para emitir o passaporte. Foi quando, inesperadamente, fui detida no Poupatempo de Itaquera, onde constava uma prisão preventiva de 30 anos contra mim.

Voltei para o cárcere nesta época e doente, quase morri em Franco da Rocha, esquecida dentro do Bond na volta do COC.

Depois de mais dois anos de prisão, em março 2013, retomei minha liberdade. Nesta época eu já conhecia o meu atual esposo, Fábio, apenas por cartas e telefone. Somos casados há três anos.

Vim reconstruindo minha vida ponto por ponto.

Aglaê (de vestido florido) junto das equipes Nova Rota e Responsa - Foto: divulgação
Aglaê (de vestido florido) junto das equipes Nova Rota e Responsa - Foto: divulgação

Em 2019, época em que o Fábio também ganhou liberdade, conhecemos o Instituto Responsa, e eu o inscrevi no programa. Neste tempo eu estava empregada em uma corretora de seguros, mas foi o trabalho do Responsa que se tornou um divisor de águas em minha vida e da minha família.

Minha filha Carolina é bolsista do Nova Rota, por intermédio do Responsa. Meu filho Cauê é empregado CLT da área de TI da empresa Dolado, estudante e próspero. Minha filha Luiza presta serviços na startup Tembici.

Meu esposo Fábio é um orgulho para o Responsa. Depois de 19 anos preso e há três em liberdade, possui hoje um cargo de liderança e confiança.

No final de 2019 eu fui demitida e comecei a fazer trabalhos sociais e voluntários no Responsa, foi então que encontrei um significado para minha nova existência. Ajudar as pessoas que saíram do cárcere. Primeiro ouvi-las, acolhê-las e apoiá-las.

Hoje eu luto pela empregabilidade do egresso do sistema prisional, pela dignidade da família e pela diminuição da violência.

Lembra quando disse que meu pai me ensinou o significado do amor e da caridade? Eu passei a vida desenvolvendo a prática sempre que levava um usuário como eu para tomar banho, pois todos tínhamos que andar limpos. Aos 12 anos eu doei todos os meus brinquedos. E por aí vai...

Hoje com o trabalho no Responsa eu conduzo o “Feirante Responsa”, que arrecada alimentos perecíveis nas feiras para a doação semanal a centenas de famílias carentes. Faço a distribuição de cestas básicas a egressos e aos familiares de pessoas privadas de liberdade. Participo também de ações comunitárias aqui onde moro, o Jardim Dona Sinhá.

Essa é a Tia Ruth ou a Dona Aglaê como quiserem.

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