Ação pela Paz - Sozinho talvez não seria possível

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Sozinho talvez não seria possível

Por Carlos Andrade
Dr. Carlos Andrade - Foto: divulgação
Dr. Carlos Andrade - Foto: divulgação

Ressocialização de pessoas sentenciadas por crimes de diversas naturezas, para que isso? Porque ou para que investir esforços criando projetos com aplicação dentro de presídios visando contemplar sentenciados e sentenciadas. Pra que isso? 

Porque ou pra que investir em pessoal, recursos financeiros, aumento de segurança para os presos e presas terem acesso à educação, cultura, trabalho, religião, entre outras ferramentas implantadas dentro dos presídios com o fim de ressocializar e diminuir a reincidência criminal. Pra que isso?

Pra que isso se as estatísticas insistem em apontar aqueles que após cumprirem suas penas voltaram a reincidir ou então, ainda durante o cumprimento da pena, continuam a cometer crimes? Será que os esforços estão sendo em vão?

Será que os quase nove anos do Programa SEMEAR* estão fazendo sentido?

Bom, se olharmos para um certo jovem, com histórico igual ou parecido com o de milhares de jovens e adolescentes do estado de São Paulo, quiçá do Brasil, talvez.

Um rapaz que teve uma infância de poucos recursos e muita dificuldade social, cultural e educacional e, logo na adolescência, acreditando que poderia mudar o mundo, e se não conseguisse, pelo menos as condições de sua família mudariam, recebeu proposta oriunda da criminalidade local.

Por acreditar no seu potencial aceitou, pois as grandes recompensas com poucos esforços encheram-lhe os olhos.

Ele descobriu que não mentiram, mas também descobriu que não contaram toda a verdade. Após uma vida de crimes e recompensas criminosas, este jovem se deparou com o efetivo trabalho da polícia militar, acabando por conhecer a fundo o interior de um presídio.

Registro ilustrativo Foto: SAP
Registro ilustrativo Foto: SAP

Certo, mas e daí?

Essa introdução foi necessária para entender o perfil dos presos e presas que ocupam o sistema prisional e possuem suas peculiaridades, mas, na maioria das vezes, se confundem quando analisamos o histórico.

O jovem mencionado chegou ao sistema desacreditado, confiante que aquilo seria passageiro e logo voltaria as ruas recuperando seu prestígio e vantagens conseguidas com a vida de crimes.

Dentro do presídio, percebeu a existência de uma biblioteca, com diversos títulos de livros à disposição de qualquer um. Percebeu também a presença de uma escola de ensino supletivo, que possibilitava, àqueles que quisessem, concluir os estudos. Percebeu também que existia a oferta de cursos profissionalizantes, e por fim, notou que existia ali a oferta de trabalho com remuneração pertinente.

Imaginem só um jovem de 18 anos, crente que o presidio era um lugar onde para sobreviver deveria estar disposto a matar. Vendo todas essas ferramentas de ressocialização, o espanto foi imediato, mas não encheram os seus olhos.

Pouco tempo depois da prisão, este jovem teve uma ideia: usar estas ferramentas ao seu favor, com o objetivo inicial de adquirir conhecimento e aperfeiçoar suas técnicas criminosas.

Começou lendo livros emprestados pela biblioteca. Depois, participou do projeto “Clube de Leitura”, do curso Programa de Educação para o Trabalho e Cidadania (PET), na época oferecidos pela Fundação “Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel” (Funap), e a mente deste jovem estava sendo modificada.

Decidiu-se matricular na escola. Apesar de ser “de maior”, não havia concluído os estudos. Conseguiu. Depois de alguns anos concluiu, obtendo diploma de conclusão do ensino médio, por meio da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), realizada dentro do presidio.

Foto: arquivo pessoal
Foto: arquivo pessoal

Já iniciado no caminho de transformação, se inscreveu para uma vaga no curso de “Eletricista Predial e Residencial”, oferecido por meio de parceria entre o SENAI e a Funap. Esse foi seu primeiro diploma de capacitação. Sentiu-se um eletricista qualificado, chegando até a fazer planos de seguir na profissão.

Se parasse por aqui, já teríamos uma grande resposta para os tantos “pra quês” ditos no início deste texto, mas não parou por aí.

Este jovem já não era o mesmo.

Entre livros, clubes de leitura, conclusão do ensino médio e curso profissionalizante, este jovem ouviu falar na oportunidade de se tornar monitor educacional, podendo contribuir com o ensino formal de outros presos. Se inscreveu na seleção de candidatos, se preparou para a avaliação e foi aprovado.

Ora, de alguma forma este jovem havia voltado ao posto de liderança, porém, desta vez, líder de uma sala de aula composta por sentenciados assim como ele. Deixou de ser chamado de “patrão” e passou a ser chamado de “professor”.

Foi nessa ocasião que Silvio Luiz do Prado, então Diretor Regional da FUNAP, e os servidores da fundação, a Elizandra Mazei, o Gilson e o José Leme, entre outros, entraram na vida deste jovem. A gratidão a essa amizade permanece até os dias atuais.

Já está bom né? Mas vamos prosseguir mais um pouquinho.

Com a chegada dos professores da educação formal, os então monitores passaram a auxiliares, mas este jovem teve uma nova oportunidade. Designado a monitor do curso PET, passou por mais uma jornada de aprendizado e compartilhamento de conhecimento.

Este jovem teve a oportunidade de iniciar curso superior de Licenciatura em Pedagogia, oferecido aos monitores educacionais, em parceria com uma faculdade da região. Infelizmente não houve a conclusão da graduação, na época por motivos operacionais e estruturais. Mas a esse ponto, a mente deste jovem já havia sido tomada pela consciência de que a vida criminosa não fazia mais nenhum sentido.

Foi transferido para um regime mais brando, o semiaberto. Lá, sem titubear em aceitar a primeira oportunidade oferecida, passou a ser bibliotecário. Ficou por algum tempo, se dividindo, quando necessário, entre as funções de monitor-auxiliar de educação e monitor do curso PET, suprindo alguma lacuna, visto que sua bagagem o permitia assim fazer.

Nesse presídio de semiaberto, este jovem participou de uma peça de teatro, apresentada durante a “Jornada de Cidadania e Cultura”, realizada anualmente nas unidades prisionais, promovida pela Coordenadoria de Reintegração Social e Cidadania (CRSC), da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo. Foi quando a Ana Carolina Cordeiro entrou na vida deste jovem, na época como assistente social.

Na ocasião ela interpretou uma vítima sendo roubada, depois vindo a ser Diretora de Educação naquela unidade, podendo conhecer mais de perto os esforços deste jovem.

Carlos em mesa de debates sobre ressocialização - Foto: arquivo pessoal
Carlos em mesa de debates sobre ressocialização - Foto: arquivo pessoal

Ali ele ficou até que recebeu a liberdade, Alvará assinado pelo Juiz de Direito Dr. Prof. Luís Augusto Freire Teotonio, no dia 23 de setembro de 2015. Em liberdade, este jovem colocou em prática todo aprendizado conseguido nos livros, nas salas de aulas e nos cursos. Foram muitos trabalhos autônomos até se fixar na profissão de mototáxi.

Pronto, creio que os “pra quês” estão respondidos, certo?

Mas os resultados dos gigantescos esforços de todos aqueles mencionados no início geraram mais frutos.

Houve um projeto de oferecimento de bolsa de estudos em curso superior para um egresso. Foi aí que o nome deste jovem foi mencionado, como quem poderia encabeçar o projeto e conclui-lo com sucesso. Relembro aqui que o nome da mulher que o indicou para a oportunidade foi mencionado pouco acima.

Este jovem quase desmaiou com a notícia. Saber que poderia realizar o sonho de concluir um curso superior o deixou extremamente contente. Iniciado o curso de bacharel, ele teve excelente aproveitamento até a conclusão.

Para surpresa daquele jovem, um dos seus professores na faculdade tinha o nome de Luiz Augusto Freire Teotonio, e era juiz de direito. Ficou espantado, com uma alegria extravagante, mas se conteve.

Voltou no dia seguinte e mostrou ao professor seu alvará de soltura com a assinatura do Juiz. Enfatizou que era uma honra, privilégio, alegria e todos os demais sentimentos bons estar como aluno na sala de aula conduzida pela pessoa que assinou seu alvará de soltura.

Ali se iniciou mais uma amizade da qual o carinho permanece até os dias atuais.

Durante a faculdade muitas coisas aconteceram na vida deste jovem e, após um singelo convite para dar seu testemunho, passou a ser palestrante focado em ressocialização e superação, visitando presídios e faculdades, levando a mensagem que é possível e vale à pena.

Foto: arquivo pessoal
Foto: arquivo pessoal

Passou a integrar a ONG Garotos do Futuro, idealizada por um também egresso, atual presidente da organização, que presta serviços às comunidades carentes da cidade, contando atualmente com apoio de autoridades, artistas e do Poder Público.

Concluiu a graduação, foi aprovado no órgão de classe, e hoje tem uma vida bem-sucedida atuando na profissão de sua formação.

Bom, creio que os “pra quês” foram satisfatoriamente respondidos... mas ainda tem mais um pouquinho.

Este jovem atualmente faz parte do projeto “Canal Liberdade”, transmitido aos sentenciados de mais de cem unidades prisionais do estado de São Paulo, tendo gravado um módulo como egresso e outro módulo como profissional de sua área de atuação. Também foi convocado para gravar o projeto “Se Liga”, que está para ser lançado com a mesma finalidade do projeto anteriormente citado.

Esta narrativa foi criada para mostrar o “porquê” ou “pra que” das gigantes energias empregadas na criação e implantação de ferramentas no sistema prisional, que visam a ressocialização e diminuição da reincidência.

Os resultados alcançados por este jovem só foram possíveis porque no caminho por ele trilhado existiram pessoas e projetos disponíveis para recebê-lo e mudar a sua vida.

Sozinho talvez não seria possível.

Por fim, se faz necessário mencionar o porquê este jovem foi escolhido como exemplo para este relato. Talvez alguns imaginem a resposta e, se foi essa, sim. Este jovem nasceu e foi registrado com o nome de Carlos Antônio Nogueira Andrade, foi aprovado no trigésimo terceiro exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), mais conhecido como este que vos escreve.

Não posso deixar de agradecer ao ilustre Promotor de Justiça Prof. Paulo Freire Teotonio, que, além de ter sido meu professor na graduação e se tornar um grande amigo, foi o estopim para minha fala ser ouvida nessa oportunidade.

Ao excelentíssimo desembargador Dr. Luiz Antônio Cardoso por me acolher dentro do SEMEAR. 

Não poderia deixar de agradecer o cuidado e atenção de Solange Senese, Cofundadora e Diretora Executiva do Instituto Ação Pela Paz, pelo cuidado e atenção em me proporcionar em participar deste espaço.

Meus sinceros agradecimentos a todos pela oportunidade que para mim é uma honra e privilégio poder falar e ser ouvido por pessoas que construíram o caminho que trilhei para chegar até aqui.

Obrigado, Jesus!

E obrigado a todos e a todas.

Programa SEMEAR *

Semear (Sistema Estadual de Métodos para Execução Penal e Adaptação Social do Recuperando) foi criado em 2014 por meio do provimento da Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo e tem como parceiros a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária e o Instituto Ação pela Paz. O programa busca maior efetividade na recuperação dos presos e suas famílias.

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